Comecei esta newsletter em 21 de julho de 2024. Desde então, já são mais de 43 edições, nas quais compartilhei reflexões sobre o impacto do trabalho como paliativista e a relação íntima com a finitude — sempre com a intenção de tocar outros colegas, contribuir com a prática profissional e ampliar o olhar sobre as vivências pessoais a partir da perspectiva da consciência da nossa mortalidade. Escrevi todas as edições sozinha.
Esta semana, no entanto, fui atravessada por uma sensação intensa. Uma querida colega paliativista perdeu o pai e mencionou o desejo de compartilhar essa experiência. Senti que era o momento de A Incrível Newsletter Paliativa abrir espaço para outras vozes — para ampliar sua potência e seu alcance. Para minha alegria, meu convite encontrou eco na autora, que nos presenteia com sua generosidade ao relatar os momentos íntimos e profundos vividos após a perda de seu pai.
Com você, as palavras de Cristiana Savoi.
meu pai morreu
No dia 14 de maio meu pai morreu.
Ainda soa estranho ler essa frase. Escrever essa frase. Lidar com o fato.
Os dois últimos anos já anunciavam a terminalidade mas ele desafiava os exames e as perspectivas prognósticas se rendiam ao otimismo dele.
Sustos acumulados, o mais recente uma arritmia que o levou contrariado pro hospital.
Saiu após estabilizada a frequência cardíaca, sem maiores problemas.
Ao entrar no carro, abriu a janela pra se despedir e dizer em alto e bom som: ‘Tchau, não volto aqui nunca mais!’
Ligou a música e cantarolou um jazz como se a internação nunca tivesse acontecido.
‘Tudo exagero dos médicos… estou ótimo!’
Mas não estava. E sabíamos. Eu e ele.
Em duas semanas, a corda se rompeu.
As muitas doenças graves sobrepostas ruíram a base e o castelo caiu.
Um delirium se instalou e em menos de 48h, ele serenou. Pra sempre.
Fui eu a constatar o óbito.
Constatar o óbito. Parece rotina. Procedimento simples.
Não quando o paciente é o seu pai.
Me deitei com ele.
Tirei a fralda.
Limpei o corpo.
Um derradeiro ato de cuidado.
(…)
O que dizer da perda de um pai?
Já começa daí.
Perda?
Sim. E não.
Não o perdi.
Meu pai está comigo.
De um modo tão gigantesco, como nunca esteve.
Tem sido muito intensa a experiência do luto. Já vivi outros, fortes. Mas nada parecido com esse.
Cada etapa me traz um aprendizado diferente.
Num primeiro momento, era só
DOR.
Uma dor física inclusive.
No corpo, na cabeça, no peito...
Me perdi no tempo e no espaço.
Como um buraco na existência.
Nas primeiras semanas após a morte dele,
tinha dificuldade pra levantar, pra pensar, pra fazer as coisas básicas da vida...
As pessoas, bem intencionadas, me desejavam ‘força,’ diziam ‘vai passar’, ‘Deus sabe de todas as coisas’…
Eu não queria saber. Não queria ser forte coisa nenhuma. Nem podia aceitar a ideia de que seria passageira a minha dor.
Nessas horas, muito pouco ajuda ouvir conselhos e proposições alheias.
Melhor mesmo é um abraço apertado, um olhar sincero, um choro compartilhado ou um bolo entregue na sua porta. Sim, pra mim comidas ajudam.
Volta e meia,
acordo pensando no meu pai... Ouvindo sua voz e sua risada.
Agora, passado o primeiro mês, sinto que estou mudando de fase.
Meu pai está ficando cada vez maior na minha vida...
E a gratidão vai tomando o lugar da DOR.
Ter tido um pai como ele foi uma benção sem tamanho.
Meu referencial de autoridade
Meu protetor
Meu exemplo
Meu suporte
Meu lugar de colo
Quem me ensinou o caminho do afeto
A importância da justiça e da honestidade
Aquele capaz de unir qualidades impossíveis de coexistir:
Simplicidade e elegância
Humildade e poder
Doçura e altivez
Acolhimento e firmeza
Desde muito pequenininha, ele me fez grande.
De muitos papéis que tenho na vida, ser filha dele é dos mais significativos.
E é por isso também que choro.
Por não ter mais seu olhar sobre mim.
Por não ter sua presença física ao meu alcance.
Sigo, oscilando entre a tristeza da perda e a força da vida.
De todas as coisas incertas, uma me sustenta todos os dias:
a certeza do AMOR vivido em toda sua potência.
(A convite da Fê, colega médica e paliativista como eu, compartilho esse relato pessoal na esperança de que possa ser alento pra alguém que vive, viveu ou viverá a dor da despedida.
É importante deixar registros. Inclusive pra desfazer enganos.
Nós, que lidamos com tantas histórias semelhantes em nossa prática profissional, experimentamos o sofrimento com a mesma intensidade, quando a doença e a morte nos tocam pessoalmente.
Não é possível estar preparado nem se blindar. Não estamos acostumados, não somos imunes.)
dica da especialista 🤌🏻
Você já tem o e-pali ou costuma ler minhas pílulas paliativas? Então já sabe que essa é uma seção especial: aqui compartilho insights a partir da minha visão e experiência profissional.
💡 Acompanhar o relato da Cristiana me lembrou, com força, que nenhum conhecimento técnico nos protege do luto. A experiência da perda nos atravessa com a mesma dor. Por isso, como profissionais da saúde, precisamos estudar o luto não apenas para cuidar do outro, mas também para cuidar de nós. Além dos nossos lutos pessoais, enfrentamos na prática clínica muitos lutos não reconhecidos — e, muitas vezes, sofremos sem perceber que estamos enlutados. Ter ferramentas não nos impede de sofrer, mas nos ajuda a reconhecer, nomear e acolher esse sofrimento com mais humanidade. E isso, por si só, já é muito.
garimpo da cecy 💎
A Cecy é uma avatar paliativa inspirada em Cicely Saunders. Ela está nos e-palis, fala com você no direct do Instagram e aqui traz toda semana avisos e indicações para você ir além.
👩🏻⚕ Cristiana Savoi é médica paliativista e divide o seu saber com estudantes e profissionais de saúde através do seu Instagram @dracristianasavoi. Acompanhe!
📙 Chimamanda Adichie escreveu um livro curto e pungente sobre sua experiência pessoal de luto após a morte do seu pai. Notas sobre o luto é um livro imperdível.
Se você é paliativista e sente vontade de compartilhar suas vivências, reflexões ou aprendizados neste espaço, escreva para mim. A Incrível Newsletter Paliativa também pode ser sua voz.
Até próximo domingo,
Fernanda